Entrevista com José Couto, presidente da Associação de Fabricantes para a Indústria Automóvel (AFIA)
Atingir o objetivo de ‘zero emissões’ em 2050, tal como exige a União Europeia, acarreta desafios para diversos setores industriais, em particular para o dos transportes. Os fornecedores da indústria automóvel posicionam-se gradualmente como fornecedores de soluções de valor acrescentado, respondendo à crescente aposta das marcas na eletrificação. Em entrevista à InterPlast, realizada à margem do evento Global Mobility 2022, o presidente da Associação de Fabricantes para a Indústria Automóvel (AFIA), José Couto, defendeu que é urgente criar uma estrutura ferroviária que nos ligue ao centro da Europa e aumentar a promoção externa das empresas nacionais.
José Couto, presidente da Associação de Fabricantes para a Indústria Automóvel (AFIA).
De facto, nos últimos anos tivemos um crescimento médio de 8%, superior à média da indústria automóvel europeia, que praticamente não cresceu. Em 2021, as exportações nacionais do setor dos componentes para a indústria automóvel cresceram mais de 4%, enquanto a própria indústria automóvel europeia não cresceu, pelo contrário, teve uma queda. Isto significa que ganhámos quota de mercado.
Hoje, quase todos os automóveis produzidos na Europa têm pelo menos um componente produzido em Portugal, o que é bastante positivo. Mas, temos de esperar algum tempo para ver estes ganhos se mantém. As marcas estão a preparar novos veículos elétricos, que provavelmente estarão no mercado daqui a dois anos. Só nessa altura poderemos perceber se as empresas conseguiram manter o nível de penetração nesses novos veículos.
Estes novos modelos têm especificidades que os tradicionais não tinham. Isto implica que, para conseguirem manter-se ou ganhar novos projetos, os fabricantes de componentes têm de contribuir com I&D de forma a entregar soluções que vão de encontro às novas necessidades dos clientes. E, estou certo que as empresas portuguesas têm capacidade para tal. No entanto, há fatores externos que podem condicionar a posição que ocupam no mercado, como é o caso da falta de componentes eletrónicos que continua a afetar o setor [alguns fabricantes automóveis acabam de anunciar que podem ter de vir a parar a produção novamente por falta destes componentes].
Por outro lado, há que manter a competitividade, temos de oferecer ao nosso cliente um nível de preço e de qualidade que nos posicione acima da concorrência.
Durante muitos anos, essa relação com os centros de conhecimento não foi fácil. Mas, entretanto, avançámos bastante nesta área – a prova são as Agendas Mobilizadoras, em que empresas e instituições colaboram de forma muito estreita, tendo conseguido compatibilizar objetivos e linguagens.
Este ‘acertar de agulhas’ é muito importante, principalmente numa altura em que a competitividade das empresas portuguesas ultrapassa a componente preço. O serviço que prestamos e a fiabilidade e qualidade dos produtos que fabricamos têm cada vez mais importância para o cliente. O próprio conceito de complexidade mudou nos últimos anos. Por isso, é cada vez mais importante que esta componente de I&D esteja presente na nossa oferta. E, neste aspeto, sem dúvida que a academia e os centros de investigação podem e devem ser importantes aliados da indústria.
As condicionantes são várias, muito importantes e difíceis de ultrapassar. É o caso da logística. Dificilmente as empresas portuguesas conseguem colocar as suas peças no centro da Europa, a um preço competitivo, sem ferrovia, por exemplo. Neste aspeto, Portugal está em grande desvantagem em relação a países como a Eslovénia, Polónia, Roménia ou Hungria, que viram na indústria automóvel um mercado fundamental para o desenvolvimento da sua indústria interna e que têm vindo a posicionar-se de forma muito agressiva.
Portugal tem ainda a desvantagem de não ter, nem estar perto de uma fábrica de baterias. Ora, não podemos transportar baterias de um lado para o outro, principalmente se o único canal de transporte é a rodovia. O transporte marítimo pode ser uma alternativa pontual, mas não é a solução.
Antes de mais, é preciso construir novas infraestruturas, nomeadamente ferroviárias. Além disso, é necessário vender no exterior as capacidades das empresas nacionais. E a verdade é que, no que respeita à indústria automóvel, essas capacidades não são nada de novo. Ao longo dos anos as empresas nacionais têm vindo a afirmar-se pela sua competência, pela qualidade dos seus trabalhadores e dos seus empresários. Construir uma fábrica de baterias em Portugal também seria uma mais valia importante.
Sim, mas se o nosso cliente não permitir que se faça reutilização dos materiais, não podemos utilizá-los. Impõe-se que a Comissão Europeia promova um esforço para se caminhar nesse sentido, dentro dos pressupostos da economia circular.
Por outro lado, muitos destes materiais são compósitos e não é fácil trabalhá-los de forma a que possam ser reincorporados no processo. É um desafio a que a indústria está bastante atenta. Inclusive, esse será um dos principais temas do congresso que a APIP vai realizar em outubro: o Plastics Summit Global Event, que irá decorrer no dia 17 de outubro, em Lisboa.
A diminuição da atividade industrial na Alemanha terá sempre efeito em Portugal. Mas, o modelo alemão de captação de investimento sofreu alterações na última década. Hoje, eles protegem muito mais os investimentos e apoiam diretamente a economia.
De qualquer forma, a estimativa é que cheguemos ao final do ano com menos quatro milhões de veículos produzidos na Europa. Ora, sendo a Alemanha o maior fabricante europeu, percebe-se que os fornecedores que trabalham para aquele país serão também muito afetados.
São várias. Desde questões relacionadas com o gosto dos consumidores ao aumento dos custos da energia, à falta de matérias-primas e de componentes eletrónicos.
Acho que isso não passou de uma expetativa. Provavelmente, alguma empresas sentiram que estavam aptas a acolher projetos, mas, no caso da indústria automóvel, existem processos de certificação e homologação que demoram o seu tempo. Além disso, num processo destes é necessário transferir ferramentas e linhas de produção. Não é fácil. De facto, sabemos que existiram migrações, mas apenas em produtos de trabalho intensivo.
Sim, mas a minha perceção é que esses moldes novos não têm como destino a indústria portuguesa. É exatamente por isso que nós temos vindo a chamar a atenção do Governo para a necessidade de uma maior promoção das capacidades da nossa indústria como um todo. Há que fazer saber que continuamos a trabalhar com a mesma qualidade de sempre e que estamos prontos para fazer o percurso de modernização e de capacitação necessário para dar resposta às novas exigências da indústria.
O processo da reindustrialização europeia já tinha sido iniciado antes da pandemia, mas ganhou relevância durante este período. A crise pandémica trouxe à tona fragilidades fundamentais do continente europeu nos seus processos de produção. Acredito que a Europa está a fazer um esforço importante de aposta na indústria, chamando para o espaço europeu alguns investimentos importantes que tinha feito noutras zonas do globo, mas a questão é se ainda vamos a tempo e se estamos a ser suficientemente rápidos.
Não sei se contribuem para a solidez das empresas. O PRR é um incentivo, mas obriga as empresas a investir quando, nos últimos anos, muitas delas tiveram de fazer esforços importantes para se manterem no mercado. Ou seja, as empresas que se candidatarem têm de estar bastante equilibradas de antemão.
Aliás, no que respeita às empresas da indústria automóvel, o último estudo da AFIA demonstra que, até 2021, mantiveram os rácios muito equilibrados, apesar de alguma perda de margem. Isto na sequência de uma conjuntura adversa em que tiveram de lidar com problemas de tesouraria, recursos humanos, entre outros.
O PRR permite que as empresas possam investir em tecnologia e em capacitação, mas estamos a falar de aspetos muito específicos, como o energético ou os que compreendem as Agendas Mobilizadoras. No entanto, acho que, neste momento, é mais importante ajudar as empresas a acabar os investimentos que têm em curso e, sobretudo, a dar o salto para a indústria 4.0. A pandemia veio acelerar a exigência de digitalização da indústria. Hoje, todos temos de estar mais preparados para implementar a digitalização nas empresas - interligando o chão de fábrica e os processos de gestão com os dos nossos clientes e fornecedores - porque os nossos clientes vão exigir-nos isso. Tal como nos vão exigir uma diminuição da nossa pegada ambiental. E, para isso, é preciso dinheiro.
Nos próximos anos vamos ter desafios enormes. Os projetos ligados aos motores tradicionais vão desaparecer e, ao mesmo tempo, vamos ter de ganhar novos projetos ligados a outras soluções de motorização. E, neste balanço, podemos não ter aumentos das vendas, mas acredito que daqui venham alguns benefícios, do ponto de vista do valor acrescentado.
O elétrico afirmou-se e não será fácil destroná-lo. Mas a questão das infraestruturas de abastecimento é um problema para alguns países, como Portugal, Itália ou França. Há soluções alternativas e, provavelmente, teremos marcas a desenvolver soluções a hidrogénio, por exemplo.
Quem faz componentes para os automóveis tradicionais fará para os elétricos também. As empresas portuguesas, como já provaram no passado, estarão prontas para fazer esse esforço de desenvolvimento, de modo a oferecer ao cliente novas soluções. Basta que elas sejam chamadas a entregar essas soluções. E essa é a questão fundamental.
Sim, é um problema. De tal forma que muitos empresários têm evitado despedir trabalhadores em momentos de crise, num sacrifício muito significativo para as empresas, porque não querem mandar embora alguém em cuja formação investiram bastante e que lhes vai fazer muita falta no futuro.
Para resolver o problema, temos de tornar a indústria ‘sexy’ para as novas gerações. É preciso que os jovens voltem a acreditar na indústria e que vejam nela uma carreira. Por outro lado, temos de continuar a formar as pessoas que já temos dentro das empresas, dando-lhes condições para aumentarem as suas competências.
Os números da indústria nacional de componentes para automóvel
Portugal tem atualmente cerca de 350 fabricantes de peças e componentes para automóvel, o que representa 0,9% da indústria transformadora nacional. Estas empresas empregam 62 mil pessoas, tendo criado mais de 14 mil postos de trabalho entre 2015 e 2019.
No seu conjunto, totalizam um volume de negócios de 11 mil milhões de euros, ou seja, 5,2% do PIB do país. Entre 2015 e 2019, esta indústria registou uma taxa de crescimento média anual de 8%. Após o retrocesso resultante da pandemia (-13,5% em 2020), conseguiu uma rápida recuperação, atingindo um aumento de 6,7% em 2021.
Trata-se de uma indústria altamente exportadora, com as vendas ao exterior a representarem mais de 80% do volume de negócios (nove mil milhões de euros em 2021, o que representa 14,2% das exportações de bens transacionáveis). No ano passado, a maioria das exportações teve como destino a Europa (88,3%), mais concretamente Espanha (29%), Alemanha (20,6%), França (11,6%) e Reino Unido (4,7%).
A maioria das empresas são de capital maioritariamente português (62%), estão localizadas no Norte (54,2%) e Centro (30,8%) e distribuem-se pelos seguintes setores de atividade:
A Indústria de Componentes Automóveis tem revelado um desempenho acima da produção automóvel na Europa. Entre 2015-2019 cresceu a uma taxa de +8% ao ano, o que compara com um crescimento médio anual de apenas +0,3% da produção automóvel na Europa. A performance em 2020 e 2021 continua a evidenciar a competitividade e resiliência da indústria portuguesa de componentes automóveis. Após uma quebra de -13,5% em 2020, registou um crescimento de 6,7% em 2021, mais de três pontos percentuais acima da taxa registada pela produção automóvel, que se situou ainda em terreno negativo (-3,5%).
Fonte: AFIA.
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InterMETAL - Informação profissional para a indústria metalomecânica portuguesa